'A epidemia do silêncio': texto de Clóvis Rossi censurado em 1974

Acervo - Estadão

14/06/2019 | 16h46   

Leia texto do jornalista [1943-2019] proibido de ser publicado pela ditadura militar

Esse é um daqueles textos que já merecia ter sido destacado antes pelo Acervo Estadão por vários motivos. Mas, como sempre acontece, a correria do dia-a-dia acaba deixando esse tipo de material para trás, vindo à tona somente nesses momentos inevitáveis de serem lembrados. Clóvis Rossi [1943-2019] trabalhou por vários anos no Estadão entre as décadas de 1960 e 1970 e, como repórter, chefe de reportagem, editor e coordenador participou de várias coberturas históricas, como a Revolução dos Cravos em Portugal, a queda de Salvador Allende no Chile, a visita da Rainha Elizabeth ao Brasil. Entre tantos textos publicados, um não publicado, sob o título 'A epidemia do silêncio' - censurado pela ditadura militar e substituído por um poema de Camões - sintetiza quem era o jornalista Clóvis Rossi. Falava sobre a epidemia de meningite e sobre o governo militar ocultar e censurar as informações sobre a doença que causava várias mortes no País:

"O repórter, hoje no Brasil, é tratado, invariavelmente, por qualquer autoridade - e mesmo por qualquer pessoa que pretenda ser autoridade, mesmo quando não é - como um inimigo a ser evitado, um perigoso subversivo... ...Hoje, o que se pode ter é apenas um lado da verdade: o lado oficial, asséptico, geralmente otimista, ufanista o mais das vezes. Quem não aceita só esse lado, que leia poesias". [Leia a íntegra]

Estadão -  26 de julho de 1974 [censurada] 

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A epidemia do silêncio

CLÓVIS ROSSI

O surto de meningite que matou mais de 200 pessoas em São Paulo só neste mês de julho não é lamentável apenas por suas consequências ou por revelar dramaticamente a precariedade do sistema de Saúde Pública do Estado que se orgulha de ser o mais rico da Federação. Talvez ainda pior do que tudo isso seja o fato de que, com ele, atingiu o seu ponto mais alto também a epidemia de desinformação e ocultamento de fatos que as administrações públicas, a todos os níveis, resolveram desencadear faz já algum tempo.

Desde que, há dois anos aproximadamente, começaram a aumentar em ritmo alarmante os casos de meningite em São Paulo, as autoridades cuidaram de ocultar fatos, negar informações, reduzir os números referentes à doença a proporções incompatíveis com a realidade — ou seja, levando, deliberadamente, a desinformação à população e abrindo caminho para que boatos ocupassem rapidamente o lugar que deveria ser preenchido per fatos. Fatos que as autoridades tinham a obrigação, por todos os títúlos de esclarecer ampla e totalmente.

Nos primeiros dias deste mês, quando a meningite passou à fase que alguns médicos consideram epidêmica, a Secretaria da Saúde manteve-se trancada no seu eterno mutismo, até que, atropelado pelos fatos, o próprio governador se viu obrigado a lançar nota oficial, dando a situação como "sob controle", uma afirmação que pode ser chamada tranquilamente de cínica, no mínimo, quando os cartórios registram a média diária de nove óbitos em consequência da meningite. Antes disso, qualquer repórter que tentasse obter informações no Hospital "Emilio Ribas" era obrigado a voltar à Secretaria da Saúde, porque informações só podiam' ser dadas após autorização expressa da secretário. Esse absurdo patente não é, entretanto um caso isolado. Ele pode ser o mais grave de todos, porque informações sobre o surto de meningite interessam a toda uma população de seis milhões de habitantes e devia ser obrigação das autoridades divulgá-las sem "autorizações" segredos, meias-verdades.

Em muitas outras situações, esse clima de ocultação de fatos é uma constante. Recentemente, a CESP permitiu que boatos alarmantes circulassem em toda a região adjacente a Ilha Solteira, depois de ter sido obrigada a esvaziar um dos lagos da usina ali localizada enquanto insistia em afirmar que nada estava acontecendo. Três dias depois, entretanto, saia a nota oficial na qual a empresa explicava que, de fato, nada de grave estava ocorrendo, mas havia motivos para o esvaziamento do lago (uma abrasão na parede ,de concreto da represa). Se a nota tivesse sido divulgada pelo menos um dia antes — e não três dias depois'— o sobressalto de toda a população teria sido evitado, porque, simplesmente. os boatos não preencheriam os vazios deixados por falta de fatos oficialmente divulgados.

O clima de segredo é generalizado: guardas armados vigiam os acampamentos dos operários que constroem trechos da Rodovia dos Imigrantes, o acesso ao canteiro de obras da Ponte Rio-Niterói, durante a época de sua construção, era terminantementes proibido, o já folclórico "elevador privativo" do Palácio do Planalto transporta autoridades que, após despachar com o presidente, parecem ter medo de que segredos de Estado sejam desvendados numa simples e rápida entrevista pelos repórteres que cobrem as atividades oficiais. No Palácio dos Bandeirantes, então, a falta de informações que não sejam as divulgadas pelo Serviço de Imprensa do Governo do Estado é tão grande que nenhum jornal mantém um repórter ali (o único que ainda permanece pertence a uma radio), ao contrário do que acontece (ou acontecia) nos demais setores vitais do Estado. Não que todos os jornais tenham antipatias invencíveis pela triste figura do governador de São Paulo; é que, simplesmente, não há o que fazer ali, não há informações a recolher, não há quem se disponha a dá-las.

Paradoxalmente, cresceram e se sofisticaram terrivelmente os serviços de imprensa, inclusive na área da empresa privada. Mas esses serviços não se prestam para o que deveria ser sua função primordial: fornecer informações. Limitam-se a divulgar realizações impressionantes (nem sempre realizadas), planos, mirabolantes (nem sempre executados) louvações deslumbradas (nem sempre deslumbradas). Claro que jornais e jornalistas não são tão angelicais a ponto de suporem que os serviços oficiais de imprensa divulgariam críticas aos órgãos ou pessoas a que servem. Mas, em circunstâncias normais, deveriam esperar que respondessem a questões específicas, o que quase nunca acontece. Quanto custou, determinada obra? Por que foi escolhido o plano X, entre três outras opções? Quantas pessoas morreram de meningite em São Paulo neste ano? — essas perguntas raramente são respondidas. E, até hoje, a opinião pública ignora quanto custou exatamente cada quilometro da Rodovia Transamazonica, quantos operários morreram na construção da Ponte Rio-Niterói, porque não se chegou ainda a uma definição sobre a Linha Leste do metrô paulistano, embora a Prefeitura dependa dela para a elaboração de seu orçamento — entre muitas outras questões mais ou menos importantes.

Talvez por isso, cresça, entre o público, a desconfiança em relação a toda e qualquer informação. Um exemplo claro é o incêndio do Andraus: não conheço uma só pessoa em São Paulo que acredite que apenas 16 pessoas morreram no prédio da avenida São João, embora, nesse caso, haja algumas razões para supor que esse número esteja no mínimo bastante próximo da verdade, se não corresponder totalmente a ela.

O repórter hoje, no Brasil, é tratado invariavelmente, por qualquer autoridade — e mesmo por qualquer pessoa que pretenda ser autoridade, mesmo quando não o é — como um inimigo a ser evitado, um perigoso subversivo (como o prefeito de São José dos Campos, por exemplo chegou a publicar, em anúncio no jornal local, no qual procurava negar a existência de casos de meningite em sua cidade, no inicio deste ano), ou talvez espertíssimo espião russo ou americano, pronto a desvendar as mais recentes conquistas da técnica rodoviária que devem estar sendo empregadas na Rodovia dos Imigrantes, para justificar as cercas, cancelas e guardas armados.

Que a imprensa comete exageros, ninguém nega. Todos os cometem. Mas, para coibi-los, está em vigor uma legislação das mais rigorosas, capaz de evitar não apenas os exageros. Fazer segredo, ocultar informações ou divulgá-las pela metade, entretanto, não faz parte dos dispositivos da Lei. Nem por isso, deixam de ser usados indiscriminadamente, como se a opinião publica não merecesse aos menos uma satisfação dos atos tomados pelos que dirigem os destinos do Estado ou do Pais.

O mais triste de tudo isso é que esse clima de desinformação intensificou-se justamente quando se prometeu jogar o "jogo da verdade". Hoje, o que se pode ter é apenas um lado da verdade: o lado oficial, asséptico, geralmente otimista, ufanista o mais das vezes. Quem não aceita só esse lado, que leia poesias.

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Abaixo, a capa do caderno especial elaborado por Clóvis Rossi em dezembro de 1969 sobre a década de setenta que ia começar:

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