A morte de Charles de Gaulle em 1970: "França está viúva"
Edmundo Leite - Acervo Estadão
11/11/2020 | 08h37   
Obituário do ex-presidente francês foi escrito por Gilles Lapouge, correspondente do jornal em Paris
"Morre de Gaulle, França está viúva". Com essa manchete na edição de 11 de novembro de 1970 sobre a primeira página de tema único, o Estadão noticiou a morte do general e ex-presidente francês Charles de Gaulle numa de suas capas históricas mais marcantes.
PARIS, 10 - O general Charles de Gaulle morreu às 19h e 30 de ontem em sua residência de Las Boisserie, em Colombey-les-deux-Eglises, em consequência de um aneurisma. Sua morte só foi anunciada oficialmente às 9 e 41 horas da manhã de hoje. "A França está viúva", disse o presidente Pompidou. Os funerais serão realizados na próxima quinta-feira. Por determinação de de Gaulle, somente seus parentes e uma reduzida delegação das Fôrças Armadas comparecerão às cerimônias fúnebres, que serão as mais simples. Apesar das determinações de de Gaulle, o presidente George Pompidou e o primeiro-ministro Jacques Chaban-Delmas viajarão amanhã para Colombey-les-deux-Eglises. O presidente Richard Nixon e o primeiro-ministro soviético, Alexei Kossigin, já anunciaram que comparecerão na próxima quinta-feira à missa que o governo francês mandará oficiar na catedral de Notre Dame.
Além das notícias da comoção na França e no mundo, o fim do estadista que foi uma das principais figuras do século 20, foi objeto de um obituário escrito pelo correspondente do Estadão em Paris, Gilles Lapouge [1923-1970], publicado na página 2 do jornal. No texto "Fechado pela morte um capítulo da História", Lapouge descreveu não só a trajetória militar e política do general e ex-presidente, mas traçou um perfil psicológico de de Gaulle e dos franceses. Uma aula de História numa página de jornal.
Fechado pela morte um capítulo da História
Gilles Lapouge, Nosso correspondente
PARIS, 10 - Estranho durante tôda a sua vida, estranho mesmo depois de morto, eis a imagem que ele nos deixa ao desaparecer. Eis também, indubitavelmente, o que explica o curioso relacionamento passional que sempre existiu entre êle e sua nação, relacionamento ilustrado pela última vez, esta manhã, no momento em que as primeiras edições do jornal France-Soir saíam às ruas, anunciando em títulos de dez centímetros de altura: De Gaulle morreu”.
As bancas de jornais foram tomadas de assalto. Os populares detinham-se nas ruas para ler a notícia, cabisbaixos. Inimigos ou amigos, adversários ou admiradores fanáticos, não houve quem deixasse de comover-se com a notícia. Um monstro acabava de desaparecer, uma dessas criaturas inclassificáveis, um campeão fora de série que chegou a ser detestado mais do que qualquer outro, mas que jamais deixou de ser admirado como pessoa. Repentinamente, esta manhã, terminou um dos grandes capítulos da História francesa."
O TESTAMENTO
Como tantas vezes ocorrera em vida, sua morte provocou efervescência. Todas as cadeias de rádio mobilizaram os seus jornalistas para entrevistar especialistas, os políticos, os parentes. Estranho concerto post mortem. Os mais encarniçados de seus inimigos lhe prestavam homenagens, reconhecendo a dimensão extraordinária do homem que acabava de extinguir-se.
Pompidou falou à nação pelo rádio e televisão, divulgando o testamento deixado por de Gaulle. Testamento surpreendente, em que êle pede exéquias familiares e uma absoluta descrição. Não quer homenagens como presidente da República, nem funerais nacionais, condecorações, discursos oficiais ou comissões constituídas. Quer apenas ser sepultado entre os seus parentes, apenas um coropo entre outros corpos. Somente o povo é convidado aos funerais.
Inegavelmente, êsse testamento é marcado por um orgulho delirante. Nem o Panteão está à sua altura. E, no entanto, o mais extremado orgulho e a mais extrema humildade aqui se unem obscuramente. De Gaulle quer simplesmente ser sepultado na terra da França que amou, como um homem entre milhões de outros homens que participaram da aventura e do destino dêste pais.
DUPLO NÍVEL
O testamento suscita outras questões. Ele foi redigido em 1952 e entregue, na época, a George Pompidou, hoje presidente da República. Posteriormente, surgiram divergências cruciais, que culminaram com um verdadeira ruptura.
Mas, mesmo nas situações mais críticas de sua vida, de Gaulle jamais recuou da decisão inicial. Depois de deixar o Eliseu, nunca mais voltou a receber Pompidou. E, não obstante, jamais refez ou retirou o testamento das mãos daquele que se convertera em seu inimigo.
Como ilustrar melhor o duplo nível em de Gaulle se situava? Por um lado, ao nível da vida, êle podia acusar Pompidou de deslealdade ou considêra-lo um renegado. Por outro lado, ao nível da História, cumprir-se-ia aquilo que deveria ser cumprido. O testamento permaneceu em poder do homem que iria substitui-lo na presidência da nação.
FIGURA FAMILIAR
Para os franceses, independentemente da dimensão singular de de Gaulle, é também uma figura familiar que desaparece. Afinal, o velho general atuou durante trinta anos na política francesa - e que caminho áspero juntos percorremos! A derrota em 1940, a louca aventura da França Livre e da Resistência, a obscuridade de Colombey-les-deux-Eglises entre 1946 e 1958, o ressurgimento em meio à fúria e ás chamas da Argélia a 13 de maio de 1958 e, posteriormente, o calvário que deveria conduzir à independencia.
Depois, os fatos e as emoções que se sucedem - libertada de si mesma, a França é envolvida no desafio e na polêmica, no conflito com as idéias da epoca: sai da NATO, não admite a divisão do mundo em dois blocos, luta duramente para impedir o ingresso da Grã-Bretanha no Mercado Comum Europeu, luta contra o dólar, apóia os movimentos de emancipação, toma posição no Vietnã e em Quebec - em suma, o o panorama é imenso e a luta violenta e extenuante.
Real grandeza no crepúsculo
Não é este o momento de aquilatarmos os méritos e os erros dessa política. Uma grande figura de porte internacional acaba de desaparecer. Último sobrevivente dos gigantes da última guerra, ele tinha dimensões históricas, fato que ninguém hoje ousaria contestar.
O mais surpreendente, entretanto, talvez seja o que se passou há pouco mais de um ano. Apresentado e tido como ditador, de Gaulle abandona, sem uma palavra, do cenario mundial, no dia em que é contrariado pelo povo num referendum. Regressa às suas antigas árvores de Colombey-les-deux-Eglises, mergulha no mutismo. Já as sombras da morte se avizinham. Nem uma palavra, no decorrer desse ano e meio, irá perturbar o silencio de Colombey-les-deux-Eglises, salvo as palavras de seu livro de memórias.
GRANDEZA
De Gaulle, indubitavelmente, jamais atingiu maior grandeza que nos últimos meses de sua vida, no momento em que, depois de ocupado o palco internacional durante um quarto de século, optou pelo recolhimento e a literatura. Tão elevado é o o nível em que esse homem se situa até receber o golpe da morte que a simples emoção não basta para alcançá-lo.
Outros sentimentos, mais fortes e mais viris, acompanham sua partida: a admiração geral, uma espécie de reverência ante um dos últimos personagens da História da França - um daqueles homens após os quais começa a política.
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