Diário revela entusiasmo de combatente em 32

Carlos Eduardo Entini

09/07/2013 | 08h20   

Escrito no calor dos fatos, relato é rico em sentimentos que revelam a mobilização dos civis paulistas

"A plataforma é pequena para conter o povo que dá votos de felicidade num entusiasmo delirante”. É com essa impressão que Aurelio Stievani parte para o combate contra as tropas federais em 14 de julho de 1932, e também abre o diário que escreveu no calor dos fatos. Com quatro volumes e 131 páginas, o relato de Stievani é rico em sentimentos que revelam a mobilização dos civis que São Paulo vivenciou naqueles quase três meses de conflito.“A guerra tem seu lado bom. É essa camaradagem, fraternidade que floresce entre todos aqueles que se batem por uma causa justa”, concluiu o voluntário que lutou no 2º pelotão da 2ª companhia do Batalhão Universitário Paulista 14 de Julho.

Aurelio Stievani (à direita na foto) tinha 24 anos e era aluno da Politécnica quando se alistou. Formou-se engenheiro civil no ano seguinte do conflito. O batalhão, formado por universitários, viria a ser chamado de 14 de julho, em referência ao dia em que partiu de São Paulo para Itararé, na fronteira com o Paraná.

O batalhão universitário era um entre as dezenas que se formaram espontaneamente logo depois de 9 de julho quando as forças paulistas, lideradas pelo General Isidoro Dias Lopes, tomaram o estado e iniciaram a marcha para o Rio de Janeiro."Enche-me de orgulho ver a rapidez que está sendo organizada a defesa de São Paulo", testemunhou o combatente ainda no trem logo depois de partir. O Estado publicava naqueles primeiros dias de combate os diversos chamados e comunicados dos batalhões. Em 13 de julho, uma nota informava que o Batalhão Universitário estava definitivamente organizado e aquartelado no quartel do Parque Dom Pedro, e conclamava os alunos das "escolas superiores de São Paulo a se inscreverem nesse batalhão".

O diário relata 37 dias em que Stievani esteve em em ação no setor sul. No total foram 41. Os últimos quatro relatam seus dias no hospital, para onde foi depois de ter contraído uma forte gripe, “tenho todos os membros entorpecidos e sinto que estou doente”, escreveu da trincheira em Bury, um pouco antes de subir num caminhão e partir para o hospital em Piratininga.

De mão em mão. O diário, só agora revelado, que leva o subtítulo “Impressões registradas diariamente no desenvolvimento da companhia constitucionalista no sector sul”, ficou com Stievani até sua morte, em 1982. Após a morte, os pertences de Stievani, no meio deles o diário, foram entregues ao seu primo, Tito Nalon. Mas foi só seu filho, Renzo Nalon, quem o descobriu em meio a diversos documentos. Renzo o achou, “há um ou dois anos”, numa pasta em meio a documentos que até então nunca se atrevera a mexer. Depois de quase 80 anos desconhecido, Renzo o entregou à sobrinha de Stievani, Terezinha Olcese Smith, "pois ela fazia parte direta da família", diz ele. Agora Terezinha, que mora nos Estados Unidos, espera entregá-lo aos filhos de Stievani.  

 

O Estado de S. Paulo - 12/7/1956

Setor Sul. O objetivo das tropas do Setor Sul era deter o avanço das tropas federais em solo paulista. O general Brasilio Taborda relata em depoimento ao Estado em 1957 que quando assumiu o comando daquela região "as tropas não estavam em retirada (...) estavam em fuga batida praticamente sem luta. Estavam desmoralizadas". Segundo Taborda, o recuou se deu sob o comando do tenente-coronel da Força Pública, Morais Pinto, "sem esboçar defesa, ao primeiro tiro disparado em Itararé bateu vergonhaamente em retirada, sem opor resistência alguma".

Mesmo alheio ao contexto, Stievani sentiu na pele a decisão precipitada. Logo depois do primeiro confronto que participou, o combatente registrou em seu diário a retirada. No lugar do entusiasmo, a apreensão: "seis trens estão organizados e carregados. Tropas, cavalhadas, munições, provisões, tudo já esta embarcado. Não sabemos explicar por que retiramos". E depois os boatos fervilham entre os soldados "dizem que o nosso comando já seguiu" e de que houve traição.

 

 

 

A espera pelo 'batismo de fogo"

17 de julho - "O 3º Pelotão da 3ª Cia. recebe ordem para seguir para trincheira. Enchem-nos de inveja esta notícia porque todos estamos ansiosos para ir".   "O nosso entusiasmo se aviva ao ouvir o desencadeamento do combate. São precisamente 8h10 e a primeira granada do 75 se faz ouvir, passando pelo campo de aviação. Dizem que é nossa artilharia (...) O nosso entusiasmo obriga a vivar São Paulo e o Brasil. A sensação que todos experimentam nesses instantes difere daquela que se pensa passar. É mais dolorosa a expectativa que o desenrolar dos fatos".

18 de julho - A artilharia inimiga "procura nos localizar", "de fato elas passam assobiando sobre o nosso quartel. Por isso recebemos ordem de sairmos e espalharmos".

O combate

18 de julho - "Ordem para seguirmos para a trincheira. Vamos reforçar o flanco esquerdo e proteger a nossa artilharia (...) Vamos entusiasmados porque todo o pelotão está animado de receber o batismo de fogo. Há três dias esperamos por essa ordem".

"Ordem do tenente Quartier pra fazermos de qualquer modo trincheiras para 2 pessoas". "Interessante que todos estão satisfeitos e não se nota qualquer expressão de receio (...) Talvez inconscientes do perigo".

Nas trincheiras,"tentamos distinguir as granadas pela intensidade do estrondo. Esta é nossa. Esta é deles, deite".

"Ordem de destravar as armas. Silêncio. Atenção. Alça de mira a 1.200 metros posição 1/8 a direita! Fogo! E o nosso pelotão, firme e atento despejou bala. Foi linda a nossa fuzilaria. Para sincronizar, a nossa artilharia começa a despejar granadas (...) Meu fuzil trabalhou admiravelmente. Falo assim porque a maioria do armamento que tínhamos era velho. Fui um dos que mais atirou no pelotão. Existem ai meu lado uma 30 cápsulas deflagradas. (...) Outro ataque, mais 30 tiros (...) O Berrini e eu ouvíamos as balas assobiarem por cima de nós (...) Foram mais ou menos 3 horas de combate quando se retiraram".  

A retirada

18 de julho - Os soldados do batalhão de Stievani estão sem comando e se juntam a outro pelotão. Começa a retirada em Itararé "os grandes depósitos de lenha já foram incendiados e o clarão da imensa fogueira imensa confunde-se com o crepúsculo". "Seis trens estão organizados e carregados. Tropas, cavalhadas, munições, provisões, tudo já esta embarcado. Não sabemos explicar porque retiramos. E depois o boato fervilha, dizem que o nosso comando já seguiu (...) minha preocupação é municiar-me (...) agora tenho um cento e tantos tiros (...) É exasperante o momento. O trem movimenta-se (...) um grande suspiro um grande alívio (...) como um abacaxi com o Berrini e o Piza (...) abacaxi esse que eu arranquei na hora, na retirada".

19 de julho - "A fuga de itararé foi por causa de traição (...) um habitante de lá localizou o campo de aviação por meio de foguetes e a artilharia inimiga começou a despejar granadas (...) O nosso avião fez muito estrago na frente inimiga (...) [eles] só entraram em itararé no dia seguinte".

22 de Julho – Chega ordem de retirada para Itapetininga, "cena idêntica à de Itararé (...) somente com a diferença de que agora (…) o inimigo foi visto”. Em Itapetininga estão concentradas todas as tropas do setor sul, "entre as tropas regulares da FP, Exército (Mato Grosso), artilharia, engenharia batalhões que chegam de S. Paulo e nós, seremos 4000 homens (...) É um grande movimento que as tropas dão a cidade. Soldados por toda a parte. Uns 150 caminhões, quer parados, ou em movimento. Verdadeira praça de guerra".

25 de julho – "Preparação para subir para Capão Bonito. Era bonito de ver-se a linha de caminhões na estrada. Cheios de soldados, mantimentos, munições etc, dava-me a impressão de ver The Big Parade".

31 de julho - "Comprei um fuzil 908 novinho com sabre. (…) Dai já não tinha preocupação. Estava completamente muito bem equipado. Batizei-o com o nome de Boi-tá-tá. E que carinho a gente cria um fuzil novo. Sempre juntinho de nós até mesmo quando dormimos".

Sob fogo inimigo

5 de agosto - "Chegaram 150 capacetes de aço para serem distribuídos. Acabo de receber um (...) Parecemos os soldados americanos das fitas".

6 de agosto – Com as tropas estacionadas em Guapira, Stievani relata: "um avião aparece no céu azul. Temos ordem de nos espalhar e abrigar porque o comandante julga suspeito o avião. (…) algum tempo depois chegam homens do front e dizem que o avião é nosso e fez estragos  a frente inimiga. São precisamente 16h50 um avião aparece. (….) Dizem que é avião suspeito. Passa por cima da cidade dá uma elegante volta e ruma outra vez por cima da cidade. É avião inimigo porque não traz os sinais característicos das tropas constitucionalistas. Ora de espalhar e deitar. Ouve-se o estourar da granada no extremo da cidade (…) Começou a fuzilaria nossa (…) Uma outra granada estoura a 50 metros de onde estou. O avião ruma para Faxina e nossa fuzilaria cessa.

7 de agosto - "Recebemos ordens de ficar espalhados sob a capoeira  (….) a fim de prevenir um ataque aéreo.

O major Rodrigue Alves (…) notou algum desânimo em alguns soldados e tomando o revólver e com energia disse: como é meus camaradas, que desânimo é esse? Vocês, tropas regulares assim? Segue o exemplo desse jovens voluntários do 14 de julho que cheios de entusiasmo seguem a qualquer hora a seu posto de honra! Ao ouvirmos essas palavras um legítimo orgulho encheu nossos corações. E agora aqui estamos sob as árvores, (…) enquanto escrevo estas linhas".

10 de agosto - "Marcha para Monjolado (…) fizemos trincheiras. Trabalhamos até o luar. Note-se que desde que saímos de Guapiara, não comemos nada, a não ser algum pedaço de pão que nos foi distribuído, e alguma fruta ou chocolate que trazíamos".

11 de agosto – "Eram 10 horas mais ou menos quando um oficial do Marcilio Franco que estava numa trincheira ao lado veio nos avisar (…) para nos retirarmos (…) e que deveríamos arranjar um guia afim de nos conduzir por atalhos no mato até capão bonito". "O que foi esse caminhar sem descanso, subindo encostas atravessando vales, equipados, sem alimento há dois dias, sob um sol ardente durante 7 horas somente cada um pode saber".

14 de agosto – "Comemoração de um mês do nome do nosso batalhão".

16 de agosto – Nós vamos para Bury. Lá 'ouve-se o canhoeiro de Bury. A fim de ficar espalhados e abrigados fomos para a capoeira. Os tiros dos canhões são ouvidos distintamente. Traço essas linhas sob esta espessa capoeira (...) as metralhadoras tanto nossas como inimigas já estão fazendo barulho. (...) Os aviões aparecem e todos nos escondemos e abrigamos. (…) estamos nas estrada mais perto da baixada e as balas assobiam por cima de nós. O 2º [batalhão] da 2ª [companhia]  recebe ordem para avançar pela baixada e estrada. De vez em quando as balas inimigas passam perto, mas vamos avançando cautelosamente.

17 de agosto – "Iniciou-se novamente o tiroteio e esta vez eles localizaram a nossa trincheira e atiram fortemente. Como a trincheira ao lado da casa não nos comporta todos, estamos em oito ou dez atrás da casa deitados. Muitas balas bateram nas tábuas da casa atravessando-as. Foram momentos de emoções fortes. (…) recebemos ordem de descer e tomar outra posição. Foi perigosíssima a descida  pela baixada pois os inimigos dominam completamente a nossa posição. O que nos salva é a nossa aviação que esta bombardeando (…) Ofegantes e emocionados chegamos perto das nossas posições. (…) Passam diversos bombeiros feridos e um morto. (...) Chega o carro da Cruz Vermelha e os leva. (...) Ordem de reunir e nos dispormos na crista mas elevada e fronteiriça do inimigo. A nossa posição é boa. (…) Abrimos trincheira até às 23 horas sob um luar gelado.

18 de agosto - Aprofundamos mais a trincheira que ficou formidável. Toda a manhã [vimos] o movimento da tropa inimiga (…) Foi sensacional pois avista-se a olho nu o movimento dos caminhões e soldados. As nossas metralhadoras fazem fogo de vez em quando. Eles não respondem e esse silêncio nos está tornando apreensivos.

Ataque aéreo

19 de agosto – "Na nossa posição (…) avistamos o movimento dos soldados inimigos a uma distância de 1300 a 1500 metros. (…) pouco depois do rancho assistimos o bombardeio aéreo feito pela nossa esquadrilha composta de 1 avião e de 3 caças. Vem-se perfeitamente os estragos produzidos pelas granadas.  São arrojados nossos aviadores (…) Faz-se um reconhecimento sobre a linha inimiga e depois numa queda brusca passando pouco acima da linha espalha o terror com a metralhadora. Nós só pensamos qual seria o nosso terror se os aviões da ditadura agissem desse modo. Felizmente depois que a nossa esquadrilha abateu um avião inimigo eles não nos incomodaram mais".

A internação

19 de agosto - "À tarde começo sentir uma forte indisposição com dor de cabeça e garganta. (…) Passei a noite muito mal dormida e com febre".    

O Estado de S. Paulo - 26/9/1932

20 de agosto - "Tenho todos os membros entorpecidos e sinto que estou doente. Levanto-me e vou ao até o PC onde dr. Waldimir deu-me cápsulas anti gripais. (…) Tenho febre outra vez e sinto tonturas. (…) com o dr. Waldimir arranjo baixa para o hospital. (…) Por uma sorte formidável um caminhão Ford vai para Piratininga. (…) Foram duas horas e meia de viagem. À tardinha chegamos. Que impressão formidável e maravilhosa a gente experimenta ao rever uma cidade depois de passar algumas semanas na trincheira. É como se a gente ressuscitasse".

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