O artigo de Arnaldo Jabor que virou a música 'Amor e Sexo' de Rita Lee
Edmundo Leite - Acervo Estadão
15/02/2022 | 13h20   
Leia o texto 'O amor atrapalha o sexo' e todos os artigos de Arnaldo Jabor publicados no Estadão de 2001 a 2017
Houve uma época na internet em que textos atribuídos falsamente a Arnaldo Jabor [1940-2022] eram espalhados por e-mail em correntes digitais mesmo não sendo de sua autoria. E algumas vezes Jabor teve que desmentir publicamente que tivesse escrito determinado texto que ganhava grande repercussão na web. O fenômeno digital dos anos 2000, que continuou com o advento das redes sociais, era fruto do sucesso dos artigos de Arnaldo Jabor publicados no Estadão, onde escreveu semanalmente de 2001 a 2017, e em outros jornais.
Ao atribuir a autoria a Jabor, quem espalhava a fake literature tentava dar credibilidade ao falso texto que tentava emplacar. Os textos de falsa autoria jaboriana nem sempre eram sobre política, um dos seus temas recorrentes, mas não o único de suas colunas, onde também discorrria sobre comportamento humano e outras questões cotidianas. Muitos dos textos atribuídos falsamente a Jabor eram românticos ou edificantes, bem destoantes do estilo do cineasta que virou cronista e comentarista após se desiludir com ao cinema nos anos 90.
Em 2002, um dos textos verdadeiros de Arnaldo Jabor publicados no Estadão tocou uma leitora em especial e ganhou um rumo mais inesperado que os das correntes digitais. Após ler o artigo "O amor atrapalha o sexo", publicado em 17 de dezembro de 2002, a cantora e compositora Rita Lee ficou tão empolgada e inspirada que compôs a música "Amor e Sexo", lançada no disco Balacubaco em 2003.
Com o sucesso da música, que emocionou Jabor, conforme escreveu em outros artigos sobre a inesperada parceria, a canção inspirou o título de seu livro "Amor é Prosa. Sexo é Poesia", no qual reuniu crônicas sobre amor e sexo, ou "crônicas afetivas", como preferia definir. "A música é linda, estou emocionado, não mereço tão subida honra, quem sou eu, quase enxuguei uma furtiva lágrima com minha “gélida manina” por estar num disco, girando na vitrola sem parar com Rita, aquela hippie florida com consciência crítica, aquela hippie paródica, aquela mulher divinamente dividida, de noiva mutante ou de cartola e cabelo vermelho que, em 67, acabou com a caretice de Sampa e de suas lindas “minas” pálidas."
Leia o artigo que inspirou Rita Lee e todos os outros textos de Arnaldo Jabor publicados no Estadão de 2001 a 2017.
Veja também:
>> As críticas originais publicadas no Estadão sobre os filmes de Arnaldo Jabor
O amor atrapalha o sexo
Arnaldo Jabor
Sábado, fui andar na praia em busca de inspiração para meu artigo de jornal. Encontro duas amigas no calçadão do Leblon. “Teu artigo sobre amor deu o maior auê...” – me diz uma delas. “Aquele das mulheres raspadinhas também... Aliás, que que você tem contra as mulheres que barbeiam’ as partes?” – questiona a outra. “Nada... – respondo – acho lindo, mas não consigo deixar de ver ali nas ‘partes’ dessas moças um bigodinho sexy... não consigo evitar... Penso no bigodinho do Hitler, do Sarney – lembram um sarneyzinho vertical nas modelos nuas... Por isso, acho que vou escrever ainda sobre sexo...”
Uma delas (solteira e lírica) me diz: “Sexo e amor são a mesma coisa...” A outra (casada e prática) retruca: “Não são a mesma coisa não...” “Sim, não, sim, não” – nasceu a doce polêmica ali à beira-mar. Continuei meu cooper e deixei as duas lindas discutindo e bebendo água-de-coco. E resolvi escrever sobre essa antiga dualidade: sexo e amor.
Comecei perguntando a amigos e amigas sua opinião. Ninguém sabe direito. As duas categorias se trepam, tendendo ou para a hipocrisia ou para o cinismo; ninguém sabe onde a galinha e onde o ovo. Percebo que os mais “sutis” defendem o amor, como algo “superior”. Para os mais práticos, sexo é a única coisa concreta.
Assim sendo, meto aqui minhas próprias colheres nesta sopa. O amor tem jardim, cerca, projeto. O sexo invade tudo. Sexo é contra a lei, no fundo de tudo. O amor depende de nosso desejo, é uma construção que criamos. Sexo não depende de nosso desejo; nosso desejo é que é tomado por ele. Ninguém se masturba por amor. Ninguém sofre sem tesão. O sexo é um desejo de apaziguar o amor. O amor é uma espécie de gratidão à posteriori pelos prazeres do sexo.
O amor vem depois. O sexo vem antes. No amor, perdemos a cabeça, deliberadamente. No sexo, a cabeça nos perde. O amor precisa do pensamento. No sexo, o pensamento atrapalha; só as fantasias ajudam. O amor sonha com uma grande redenção. O sexo só pensa em proibições; não há fantasias permitidas. O amor é um desejo de atingir a plenitude. Sexo é o desejo de se satisfazer com a finitude.
O amor vive da impossibilidade sempre deslizante para a frente. O sexo é um desejo de acabar com a impossibilidade. O amor pode atrapalhar o sexo. Já o contrário não acontece. Existe amor com sexo, claro, mas nunca gozam juntos. Amor é propriedade. Sexo é posse. Amor é a lei; sexo é invasão de domicílio. Amor é o sonho por um romântico latifúndio; já o sexo é o MST. O amor é mais narcisista, mesmo quando fala em “doação”. Sexo é mais democrático, mesmo vivendo no egoísmo. Amor e sexo são como a palavra farmakon em grego: remédio ou veneno. Amor pode ser veneno ou remédio. Sexo também – tudo dependendo das posições adotadas.
Amor é um texto. Sexo é um esporte. Amor não exige a presença do “outro”; o sexo, no mínimo, precisa de uma “mãozinha”. Certos amores nem precisam de parceiro; florescem até mais sozinhos, na solidão e na loucura. Sexo, não – é mais realista. Nesse sentido, amor é uma busca de ilusão. Sexo é uma bruta vontade de verdade. Amor muitas vezes é uma masturbação. Sexo, não. O amor vem de dentro, o sexo vem de fora, o amor vem de nós. O sexo vem dos outros. Não somos vítimas do amor; só do sexo. “O sexo é uma selva de epilépticos” (Nelson Rodrigues) ou “o amor, se não for eterno, não era amor” (NR). O amor inventou a alma, a eternidade, a linguagem, a moral. O sexo inventou a moral também do lado de fora de sua jaula, onde ele ruge.
O amor tem algo de ridículo, de patético, principalmente nas grandes paixões. O sexo é mais quieto, como um caubói – quando acaba a valentia, ele vem e come. Eles dizem: “Faça amor, não faça a guerra.” Sexo quer guerra. O ódio mata o amor, mas o ódio pode acender o sexo. Amor é egoísta; sexo é altruísta. O amor quer superar a morte. No sexo, a morte está ali, nas bocas... O amor fala muito. O sexo grita, geme, ruge, mas não se explica. O sexo sempre existiu – das cavernas do paraíso até as saunas relax for men.
Por outro lado, o amor foi inventado pelos poetas provençais do século 12 e, depois, revitalizado pelo cinema americano da direita cristã. Amor é literatura. Sexo é cinema. Amor é prosa; sexo é poesia. Amor é mulher; sexo é homem – o casamento perfeito é do travesti consigo mesmo. O amor domado protege a produção, sexo selvagem é uma ameaça ao bom funcionamento do mercado. Por isso, a única maneira de controlá-lo é programá-lo, como faz a indústria das sacanagens. O mercado programa nossas fantasias. Não há “saunas relax” para o amor, onde o sujeito entre e se apaixone. No entanto, em todo bordel, finge-se um “amorzinho” para iniciar. O amor está virando um hors-d’oeuvre para o sexo.
O problema do amor é que dura muito, já o sexo dura pouco. Amor busca uma certa “grandeza”. O sexo sonha com as partes baixas. O perigo do sexo é que você pode se apaixonar. O perigo do amor é virar amizade. Com camisinha, há “sexo seguro”, mas não há camisinha para o amor.
O amor sonha com a pureza. Sexo precisa do pecado. Amor é a lei. Sexo é a transgressão. Amor é o sonho dos solteiros. Sexo o sonho dos casados. A (O) amante sacia nossa fome de verdade, mata nossa nostalgia da animalidade. Sexo precisa da novidade, da surpresa. O grande amor só se sente no ciúme (Proust). O grande sexo sente-se como uma tomada de poder. Amor é de direita. Sexo de esquerda (ou não, dependendo do momento político. Atualmente, sexo é de direita. Nos anos 60, era o contrário. Sexo era revolucionário e o amor era careta). E, por aí, vamos. Sexo e amor tentam mesmo é nos afastar da morte. Ou não; sei lá... e-mails de quem souber para a redação.
O amor deixa muito a desejar
Arnaldo Jabor
A Rita Lee fez uma música com a letra tirada de um artigo que escrevi, sobre amor e sexo. A música é linda, estou emocionado, não mereço tão subida honra, quem sou eu, quase enxuguei uma furtiva lágrima com minha “gélida manina” por estar num disco, girando na vitrola sem parar com Rita, aquela hippie florida com consciência crítica, aquela hippie paródica, aquela mulher divinamente dividida, de noiva mutante ou de cartola e cabelo vermelho que, em 67, acabou com a caretice de Sampa e de suas lindas “minas” pálidas.
A música veio mesmo a calhar, pois ando com uma fome de arte, ando com saudade da beleza, ando com saudade de tudo, saudade de alguma delicadeza, paz, pois já não agüento mais ser apenas uma esponja absorvendo e comentando os bodes pretos que os políticos produzem no Brasil e o Bush lá fora. Ando meio desesperançado, mas essa canção de Rita trouxe de volta a minha mais antiga lembrança de amor. Isso mesmo: a canção me trouxe uma cena que, há mais de 50 anos, me volta sempre. Sempre achei que esse primeiro momento foi tão tênue, tão fugaz que não merecia narração. Mas, vou tentar.
Eu devia ter uns 6 anos, no máximo. Foi meu primeiro dia de aula no colégio, lá no Meier, onde minha mãe me levou, pela Rua 24 de Maio, coberta de folhas de mangueira que o vento derrubava. Fiquei sozinho, desamparado, sem pai nem mãe no colégio desconhecido. No pátio do recreio, crianças corriam. Uma bola de borracha voou em minha direção e bateu em meu peito. Olhei e vi uma menina morena, de tranças, com olhos negros, bem perto, me pedindo a bola e, nesse segundo, eu me apaixonei.
Lembro-me de que seu queixo tinha um pequeno machucado, como um arranhão com mercúrio-cromo, lembro-me que ela tinha um nariz arrebitado, insolente e que, num lampejo, eu senti um tremor desconhecido, logo interrompido pelo jogo, pela bola que eu devolvi, pelos gritos e correria do recreio. Ela deve ter me olhado no fundo dos olhos por uns três segundos mas, até hoje, eu me lembro exatamente de sua expressão afogueada e vi que ela sentira também algum sinal no corpo, alguma informação do seu destino sexual de fêmea, alguma manifestação da matéria, alguma mensagem do DNA.
Recordando minha impressão de menino, tenho certeza de que nossos olhos viram a mesma coisa, um no outro. Senti que eu fazia parte de um magnetismo da natureza que me envolvia, que envolvia a menina, que alguma coisa vibrava entre nós e senti que eu tinha um destino ligado àquele tipo de ser, gente que usava trança, que ria com dentes brancos e lábios vermelhos, que era diferente de mim e entendi vagamente que, sem aquela diferença, eu não me completaria. Ela voltou correndo para o jogo, vi suas pernas correndo e ela se virando com uma última olhada.
Misteriosamente, nunca mais a encontrei naquela escola. Lembro-me que me lembrei dela quando vi aquele filme Love Story, não pelo medíocre filme, mas pelo rosto de Ali McGraw, que era exatamente o rosto que vivia na minha memória. Recordo também, com estranheza, que meu sentimento infantil foi de “impossibilidade”; aquele rosto me pareceu maravilhoso e impossível de ser atingido inteiramente, foi um instante mágico ao mesmo tempo de descoberta e de perda. Escrevendo agora, percebo que aquela sensação de profundo “sentido” que tive aos 6 anos pode ter marcado minha maneira de ser e de amar pelos tempos que viriam. Senti a presença de algo belíssimo e inapreensível que, hoje, velho de guerra, arrisco dizer que talvez seja essa a marca do amor: ser impossível.
Calma, pessoal, claro que o amor existe, nem eu sou um masoquista de livro, mas a marca do sublime, o momento em que o impossível parece possível, quando o impalpável fica compreensível, esse instante se repetiu no futuro por minha vida, levando-me para um trem-fantasma de alegrias e dores. Amar é parecido com sofrer – Luís Melodia escreveu, não foi? Machado de Assis toca nisso na súbita consciência do amor entre Bentinho e Capitu: “Todo eu era olhos e coração, um coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca.” Isso: felicidade e medo, a sensação de tocar por instantes um mistério sempre movente, como um fotograma que pára por um instante e logo se move na continuação do filme. Sempre senti isso em cada visão de mulheres que amei: um rosto se erguendo da areia da praia, uma mulher fingindo não me ver, mas vendo-me de costas num escritório do Rio...
São momentos em que a “máquina da vida” parece se explicar, como se fosse uma lembrança do futuro, como se eu me lembrasse ali, do que iria viver. Esses frêmitos de amor acontecem quando o “eu” cessa, por brevíssimos instantes, e deixamos o outro ser o que é em sua total solidão. Vemos um gesto frágil, um cabelo molhado, um rosto dormindo, e isso desperta em nós uma espécie de “compaixão” pelo nosso próprio desamparo, entrevisto no outro.
A cultura americana está criando um “desencantamento” insuportável na vida social. Vejam a arte tratada como algo desnecessário, sem lugar, vejam as mulheres nuas amontoadas na internet. Andamos com fome de beleza em tudo, na vida, na política, no sexo; por isso, o amor é uma ilusão sem a qual não podemos viver. Todas essas tênues considerações, essas lembranças de lembranças, essa tentativa de capturar lampejos tão antigos, com risco de ser piegas, tudo isso me veio à cabeça pela emoção de me ver subitamente numa música, parceiro de Rita Lee, “lovely Rita”, a mais completa tradução de São Paulo, essa cidade cheia de famintos de amor.
Amor vem antes e sexo vem depois, ou não
Arnaldo Jabor
Quando contei, na semana passada, que a Rita Lee tinha feito uma música com letra de um artigo que escrevi sobre “amor e sexo”, choveram e-mails pedindo o texto. Fiquei feliz com a música (que é linda) e porque me senti coadjuvante dessa luz que ela acendeu na cultura brasileira. Rita é um caso sério. Ela brilha, purpurina, avermelha, cintila, se traveste, cresce e diminui, incha e emagrece mas, no fundo, ela é um caso sério. Ela faz essa visagem toda para nos fazer engolir uma dourada pílula: sua importância cultural e política no País. Rita tirou São Paulo da caretice, foi a guerreira da alegria durante a ditadura pois, em 68, ela estava de noiva, florida, com caras e bocas, mutante, provando que, marchassem ou não os soldados, sua metamorfose continuaria e que sua alegria, alegria, era mesmo a prova dos noves.
Rita não é só para ser ouvida; seus shows são um comício. A liberdade fica ali na cena, de back vocal, enquanto a Pátria, de botas e cabelo punk, dança rock, seguindo-a pelo palco como um Pluft. Eu não entendo de música, mas vejo a Rita aprontando há 30 anos, menina teimosa, sozinha, atacando o óbvio. Mas, seu protesto nunca foi chato, sua superficialidade é profunda. Como Rita é original... ninguém é como ela no Brasil... Me lembro quando ela criou uma marca no braço, sei lá, “ritalee”, como um Chevrolet, Shell, pois ela sabe que não somos um “sujeito único”, muito antes dessas pós-modernidades aí. Ela é uma pré-Björk. Ela nunca cantou de um só ponto de vista, porque Rita são várias; no palco, ela parece um conjunto.
Rita é a “mina” das “minas” de Sampa, frágil e corajosa, do balacobaco. Por isso, orgulhoso, atendendo aos e-mails que pedem explicação sobre esses estranhos tremores, gemidos e espumas que chamamos de amor-sexo, “copidesquei” o antigo texto e o republico, com petulante jeito de quem sabe das respostas – ai de mim, pobre pierrô fingindo de arlequim!...
Aí vai o flash-back: “Amor é propriedade. Sexo é posse. Amor é a lei; sexo é invasão. O amor é uma construção do desejo. Sexo não depende de nosso desejo; nosso desejo é que é tomado por ele. Ninguém se masturba por amor. Ninguém sofre com tesão. Amor e sexo são como a palavra farmakon em grego: remédio ou veneno – depende da quantidade ingerida. O sexo vem antes. O amor vem depois. No amor, perdemos a cabeça, deliberadamente. No sexo, a cabeça nos perde. O amor precisa do pensamento. No sexo, o pensamento atrapalha. O amor sonha com uma grande redenção. O sexo sonha com proibições; não há fantasias permitidas. O amor é o desejo de atingir a plenitude. Sexo é a vontade de se satisfazer com a finitude.
O amor vive da impossibilidade – nunca é totalmente satisfatório. O sexo pode ser, dependendo da posição adotada. O amor pode atrapalhar o sexo. Já o contrário não acontece. Existe amor com sexo, claro, mas nunca gozam juntos. O amor é mais narcisista, mesmo na entrega, na ‘doação’. Sexo é mais democrático, mesmo vivendo do egoísmo. Amor é um texto. Sexo é um esporte. Amor não exige a presença do ‘outro’. O
sexo, mesmo solitário, precisa de uma ‘mãozinha’. Certos amores nem precisam de parceiro; florescem até na maior solidão e na saudade. Sexo, não – é mais realista. Nesse sentido, amor é uma busca de ilusão. Sexo é uma bruta vontade de verdade. O amor vem de dentro, o sexo vem de fora. O amor vem de nós. O sexo vem dos outros. ‘O sexo é uma selva de epilépticos’ (N. Rodrigues). O amor inventou a alma, a moral. O sexo inventou a moral também, mas do lado de fora de sua jaula, onde ele ruge.
O amor tem algo de ridículo, de patético, principalmente nas grandes paixões. O sexo é mais quieto, como um cowboy – quando acaba a valentia, ele vem e come. Eles dizem: ‘Faça amor, não faça a guerra.’ Sexo quer guerra. O ódio mata o amor, mas o ódio pode acender o sexo. Amor é egoísta; sexo é altruísta. O amor quer superar a morte. No sexo, a morte está ali, nas bocas. O amor fala muito. O sexo grita, geme, ruge, mas não se explica. O sexo sempre existiu – das cavernas do paraíso até as ‘saunas relax for men’.
Por outro lado, o amor foi inventado pelos poetas provençais do século 12 e, depois, relançado pelo cinema americano da moral cristã. Amor é literatura. Sexo é cinema. Amor é prosa; sexo é poesia. Amor é mulher; sexo é homem – o casamento perfeito é do travesti consigo mesmo. O amor domado protege a produção; sexo selvagem é uma ameaça ao bom funcionamento do mercado. Por isso, a única maneira controlá-lo é programá-lo, como faz a indústria da sacanagem. O mercado programa nossas fantasias.
Não há ‘saunas relax’ para o amor, onde o sujeito entre e se apaixone. No entanto, em todo bordel, finge-se um ‘amorzinho’ para iniciar. O amor virou um estímulo para o sexo. O problema do amor é que dura muito, já o sexo dura pouco. Amor busca uma certa ‘grandeza’. O sexo é mais embaixo. O perigo do sexo é que você pode se apaixonar. O perigo do amor é virar amizade. Com camisinha, há ‘sexo seguro’, mas não há camisinha para o amor. O amor sonha com a pureza. Sexo precisa do pecado. Amor é a lei. Sexo é a transgressão. Amor é o sonho dos solteiros. Sexo é o sonho dos casados. Amor precisa do medo, do desassossego. Sexo precisa da novidade, da surpresa. O grande amor só se sente na perda. O grande sexo sente-se na tomada de poder. Amor é de direita. Sexo, de esquerda – ou não, dependendo do momento político. Atualmente, sexo é de direita. Nos anos 60, era o contrário. Sexo era revolucionário e o amor era careta.”
E, por aí, vamos. Sexo e amor tentam mesmo é nos fazer esquecer a morte. Ou não; sei lá... E-mails de quem souber para a redação.
O mundo hoje é travesti
Arnaldo Jabor
Está rolando na internet um texto ridículo sobre “mulheres” atribuído a mim. Sou uma besta, todos o sabem; mas, não chego a esse relincho lamentável do asno que o escreveu. Diz coisas como: “A mulher tem um cheirinho gostoso, elas sempre encontram um lugarzinho em nosso ombro.” Uma bosta, atribuída a mim. Toda hora um idiota me copia e joga na rede. Por isso, vou falar um pouco de mulher, eu que mal as entendo na vida. Não falarei das coxas e seios e bumbuns... Falo de uma aura mais fluida que as percorre. Gosto do olhar de onça, parado, quando queremos seduzi-las, mesmo sinceramente, pois elas sabem que a sinceridade é volúvel, não perdura. Um sorriso de descrédito lhes baila na boca quando lhe fazemos galanteios, mas acreditam assim mesmo, porque elas querem ser amadas, muito mais que desejadas. Elas estão sempre fora da vida social, mesmo quando estão dentro.
Podem ser as maiores executivas, mas seu corpo lateja sob o tailleur e lá dentro os órgãos estranham a estatística e o negócio. Elas querem ser
vestidas pelo amor. O amor para elas é um lugar onde se sentem seguras, protegidas. O termômetro das mulheres é: “Estou sendo amada ou não? Esse bocejo, seu rosto entediado... será que ele me ama ainda?” A mulher não acredita em nosso amor. Quando tem certeza dele, pára de nos amar. A mulher precisa do homem impalpável, impossível. As mulheres têm uma queda pelo canalha. O canalha é mais amado que o bonzinho. Ela sofre com o canalha, mas isso a justifica e engrandece, pois ela tem uma missão amorosa: quer que o homem a entenda, mas isso está fora de nosso alcance. A mulher pensa por metáforas.
O homem por metonímias. Entenderam? Claro que não. Digo melhor, a mulher compõe quadros mentais que se montam em um conjunto simbólico sem fim, como a arte. O homem quer princípio, meio e fim. Não estou falando da mulher sociológica, nem contemporânea, nem política. Falo de um sétimo órgão que todas têm, de um “ponto g” da alma. Mulher não tem critério; pode amar a vida toda um vagabundo que não merece ou deixar de amar instantaneamente um sujeito devoto. Nada mais terrível que a mulher que cessa de te amar. Você vira um corpo sem órgãos, você vira também uma mulher abandonada.
Toda mulher é “Bovary”... e para serem amadas, instilam medo no coração do homem. Carinhosas, mas com perigo no ar. A carinhosa total entedia os machos... ficam claustrofóbicos. O homem só ama profundamente no ciúme. Só o corno conhece o verdadeiro amor. Mas, curioso, a mulher nunca é corna, mesmo abandonada, humilhada, não é corna. O homem corneado, carente, é feio dever. A mulher enganada ganha ares de heroína, quase uma santidade. É umafúria de Deus, é uma vingadora, é até suicida. Mas nunca corna. O homem corno é um palhaço. Ninguém tem pena do corno. O ridículo do corno é que ele achava que a possuía. A mulher sabe que não tem nada, ela sabe que é um
processo de manutenção permanente. O homem só vira homem quando é corneado.
A mulher não vira nada nunca. Nem nunca é corneada... pois está sempre se sentindo assim. Como no homossexualismo: a lésbica não é viado.
A mulher é poesia. O homem é prosa. Isso não quer dizer que a mulher seja do bem e o homem do mal. Não. Muita vez, seus abismos são venenosos, seu mistério nos mata. A mulher quer ser possuída, mas não só no sexo, tipo “me come todinha”. Falam isso no motel, para nos animar. O homem é pornográfico; a mulher é amorosa. A pornografia é só para homens.
A mulher quer ser possuída em sua abstração, em sua geografia mutante, a mulher quer ser descoberta pelo homem para ela se conhecer. Ela é uma paisagem que quer ser decifrada pelas mãos e bocas dos exploradores. Ela não sabe quem é. Mas elas também não querem ser opacas, obscuras. Querem descobrir a beleza que cabe a nós revelar-lhes. As mulheres não sabem o que querem; o homem acha que sabe.
O masculino é certo; o feminino é insolúvel. O homem é espiritual e a mulher é corporal. A mulher é metafísica; homem é engenharia. A mulher deseja o impossível; desejar o impossível é sua grande beleza. Ela vive buscando atingir a plenitude e essa luta contra o vazio justifica sua missão de entrega. Mesmo que essa “plenitude” seja um “living” bem decorado ou o perfeito funcionamento do lar. O amor exige coragem. E o homem... é mais covarde. O homem, quando conquista, acha que não tem mais de se esforçar e aí , dança...
A mulher é muito mais exilada das certezas da vida que o homem. Ela é mais profunda que nós. Ela vive mais desamparada e, no entanto, mais segura. A vida e a morte saem de seu ventre. Ela faz parte do grande mistério que nós vemos de fora, com o pauzinho inerme. Ela tem algo de essencial, tem algo a ver com as galáxias. Nós somos um apêndice. Hoje em dia, as mulheres foram expulsas de seus ninhos de procriação, de sua sexualidade passiva, expectante e jogadas na obrigação do sexo ativo e masculino. A supergostosa é homem. É um travesti ao contrário. Alguns dizem que os homens erigiram seus poderes e instituições apenas para contrariar os poderes originais bem superiores da mulher.
As mulheres sofrem mais com o mal do mundo. Carregam o fardo da dor histórica e social, por serem mais sensíveis e mais fracas. Os homens, por serem fálicos, escamoteiam a depressão e a consciência da morte com obsessões bélicas, financeiras ou políticas. As mulheres agüentam firmes a dor incompreendida. O mundo está tão indeterminado que está ficando feminino, como uma mulher perdida: nunca está onde pensa estar. O mundo determinista se fracionou globalmente, como a mulher. Mas não é o mundo delicado, romântico e fértil da mulher; é um mundo feminino comandado por homens boçais. Talvez seja melhor dizer um mundo travesti. O mundo hoje é travesti.
Primeiro e último texto. Arnaldo Jabor começou a sua colaboração com o Estadão em julho de 2001. Para marcar a estreia, um ensaio intitulado Os agitadores estão carentes de carinho e amor foi publicado no domingo de 8 de julho em duas páginas, junto a antigas fotografias de protesto em Brasília. A coluna semanal às terças começou dois dias depois, em 10 de julho, com o texto "Brasil está com saudade da burrice", que terminava assim: "A verdade é que a democracia está decepcionando as massas. A liberdade é chata, dá angústia. A burrice tem a “vantagem” de simplificar o mundo. O diabo que burrice no poder se chama fascismo." Dezesseis anos depois, ele se despedia do espaço no jornal com o texto Adeus:
"Resolvi parar porque vou fazer mais um filme (meus inimigos dirão: mais um?) e estou louco para trabalhar só com a ideia de beleza que, como me disseram que Freud disse, seria a única razão para se viver. Vou continuar escrevendo, mas sem ritmos semanais, somente "gratia artis", talvez até tentando alguma coisa mais alentada como o romance definitivo de minha geração (rs rs rs).
Espero que eu tenha alguns méritos que possam constar de meu necrológio (que espero seja longínquo). Espero merecer um brinde, pois trabalhei e continuarei trabalhando, com a fé igual à daqueles besourinhos que se esfalfam empurrando bolinhas de merda morro acima. Aqui fico. Desculpem qualquer coisa."
Leia a íntega dos textos de estreia e de despedida:
>> Estadão - 10/7/2001
"Brasil está com saudade da burrice"
Arnaldo Jabor
A vacilação tucana pode abrir caminho para loucos populismos. FHC cometeu a burrice de não ser burro. Acreditou demais na razão, achou que a inteligência lhe abriria um caminho fácil, tanto aqui como no coração do Primeiro Mundo. Lá fora, ele achou que a complexidade do processo seria entendida e que os donos do Poder Ocidental seriam razoáveis com sua “terceira via” tropical. Na prática, FHC aprendeu que a globalização é de mão úica, que os estrangeiros lhe dão títulos honoris causa, mas mantêm suas implacáveis regras comerciais.
Aqui dentro, ele não esperava a bruta resistência da estupidez e da corrupção a seu projeto iluminista. Conseguiram virar sua “complexidade” em ininteligível “complicação”. E a era FHC pode passar à Historia como o governo que “desmoralizou a inteligência”. Dentro de um mundo que glorifica o fragmentário, o parcial, só as grandes corporações têm o direito à logica linear dos seus interesses; no mundo da “democracia”, só elas podem ser autoritárias. Aqui e lá fora, a sociedade está faminta de simplismo. Surge na política a restauração alegre da burrice, com a sombra da “direita” por trás. Forrest Gump, o herói-babaca, foi o precursor; Bush é seu efeito. Ele se orgulha de sua burrice. Outro dia, em Yale, disse: “Eu sou a prova de que os maus estudantes podem ser presidente dos USA.” É a vitória da testa curta, o triunfo das toupeiras.
Aqui, vemos também esse cansaço, depois das trapalhadas (e da urucubaca) deste governo, aqui vemos uma grande fome de simplismo “de resultados” (leia-se autoritarismo) de “dois e dois são quatro”, de “o vovô viu a uva”. Inteligência é chato; traz angústia, com seus labirintos. Inteligência nos desampara; burrice consola, explica. Os tucanos foram bichos hesitantes, cheios de “se” e de “talvez”. Os candidatos no horizontte vão trazer a mensagem tranqüilizadora do pão-pão-queijo-queijo, desde o populismo de direita ao populismo de esquerda, do obreirismo iluminado ao voluntarismo de classe média, todos buscando bandeiras fáceis de engolir. Temos infinita saudade da burrice.
Só os pobres verão Deus Existe na base do populismo brasileiro uma crença, de raiz lusitana, contra-reformista, de que o simplismo é a moradia da verdade. Em nossa cultura, achamos que há algo de sagrado na ignorância dos pobres, uma sabedoria que pode desmascarar a mentira “inteligente” do mundo. “Só os pobres de espírito verão Deus”, reza nossa tradição. A cultura lusitana estimulou a derrota social. Cada fracasso da sociedade fortalecia o rei, tranqüilizava a Igreja e mantinha em pé a coluna hierárquica que ia dos servos até Deus-pai, logo acima da Coroa. O bom asno é bem-vindo, enquanto o pernóstico inteligente é olhado de esguelha. A burrice é “sim” ou “não”. Na burrice, não há dúvidas. A burrice organiza o mundo: princípio, meio e fim. A burrice não tem fraturas. A burrice alivia – o erro é sempre do outro. A burrice dá mais ibope, é mais fácil de entender. A burrice até dá mais dinheiro; é mais “comercial”.
Neste Brasil “apagado”, pré-eleitoral, pinta uma fome de regressismo, de voltar para a “taba” ou para o casebre com farinha, paçoca e violinha.
Da simplicidade viria a solidariedade, a paz, num doce rebanho ideológico que deteria a marcha das coisas do mundo, do mercado voraz, das pestes, da violência do poder. É a utopia de cabeça para baixo, o culto populista da marcha à ré. Outro dia, vi na TV um daqueles “bispos” de Jesus de terno e gravata clamando para uma multidão de fiéis: “Não tenham pensamentos livres; o Diabo é que os inventa!” Fiquei chocado, mas entendi que a liberdade é uma tortura para esses homens desamparados pela falta de cultura.
Claro que o povo não é burro; tem sensibilidade para perceber o erro de um governo que, em nome da “razão”, ignorou a comunicação com eles. Sentem um enorme vazio com a democracia, difícil de entender com suas ambivalências. O perigo é que os espertos vão manipular a ignorância da população para transformá-la em burrice. A burrice é a ignorância ativa, a militância dos desamparados sem informações. A burrice é a ignorância com fome de sentido.
A democracia é chata Populismos de vários matizes rondam as eleições de 2002. Itamar quer ser a cara do povo “traído”, do povo “vítima”. Como já escrevi, Itamar passa, em caricatura, o mesmo clima de Hitler, que dava a sensação de que sofrera alguma injustiça, ele e a Alemanha, ambos clamando por vingança. Itamar também. Com seu beicinho choroso e seu topete ao vento, ele nos faz sentir culpados, insinuando que estamos em dívida com ele. Ele é o símbolo do bom otário, do mineiro que comprou o bonde, do Jeca que caiu no conto-do-vigário e foi humilhado pelos intelectuais. Ele se diz “traído” por Collor, por FHC, por Lilian Ramos, em sua ingenuidade de bonzinho. Itamar é “de época”; ele é o “defensor” de nossas velhas convicções erradas, de nossa incompetência quase doce. Itamar é a classe média com saudades do passado medíocre.
Ciro Gomes é inteligente, é bonito, com mulher bonita. Ciro deve abordar a massa pelo seu lado “macho”, tudo que FHC não deu (pelo que, acusam-no de Collor 2). Ciro faz um discurso moderno, mas ainda está dividido entre si mesmo e seu guru, o Mangabeira, um “professor Pardal” com sotaque, que faz ardentes conclamações a uma “mobilização” da classe média, onde se sente o sabor de um voluntarismo vagamente totalitário. Ciro ainda está dividido entre uma agenda moderna e uma prática messiânica. Lula tenta se modernizar, mas tem o rabo preso com a choldra burra do PT, que não consegue se livrar da idéia de “revolução” clássica, como um tumor inoperável. Ainda acham que vão “tomar” o poder, não ser “eleitos”. A classe média ainda teme os petistas. Só lhes resta virar PSDB-hard ou adotar um populismo à esquerda de Itamar.
O extraordinário Garotinho, nosso Tony Blair evangélico, quer ser um juscelininho dos idiotas, um sub-brizolinha pentecostal, um “Quércia
honesto”, todos os populismos avalizados por Jesus. Seu apelido passa uma aura de menino maluquinho realizador, mas sua bochecha nos lembra mesmo é a moleza dos bombons “Garoto”. Não tem a menor chance, mas é uma caricatura didática do perigo que nos ronda.
A verdade é que a democracia está decepcionando as massas. A liberdade é chata, dá angústia. A burrice tem a “vantagem” de simplificar o mundo. O diabo que burrice no poder se chama fascismo.
Caros leitores, meus semelhantes e irmãos, vou abandoná-los. Isso. Correndo o risco de 'lugares-comuns' ou lamentos narcisistas, vou dizer por quê. Foram vinte e seis anos escrevendo sem parar em vários jornais do País.
E aqui já vai meu primeiro lugar-comum: "como o tempo voa... foi outro dia mesmo" que estreei na Folha de S. Paulo, onde fiquei por dez anos.
Depois, fui para outros jornais, incluindo o Estadão e O Tempo, de Belo Horizonte. Fiz as contas e, entre o espanto e o orgulho (outra obviedade), verifiquei que, nestas duas décadas e meia, escrevi cerca de mil e quinhentos artigos em jornais. Mil e quinhentos? É. Logo depois, me meti na TV e no rádio, onde também estou há vinte anos mais ou menos. Rádio e TV juntos somam cerca de três mil comentários sobre a vida do País até hoje. Como ousei? Com que cara me meti nisso, deitando regra sobre tudo? Bem, foi por fome e não por vaidade.
Eu fiz cinema por trinta anos e, como todo cineasta, sofria de duas angústias básicas: ansiedade e frustração. Fiz nove filmes e, mesmo assim, passava necessidade para sustentar minhas filhas. Um dia falei: "Enchi. Chega de sofrer". Encontrei Fernando Gabeira num avião e pedi que ele me recomendasse à Folha, onde ele escrevia. Pois não é que o bom Gabeira me indicou ao Otavinho Frias, que me empregou? Sou grato a Gabeira por isso e pelo importante trabalho desse grande brasileiro.
Assim, por acaso (mais um chavão), se muda a vida de um homem. E "não pude me conter de alegria" (mais um...) quando, no dia seguinte ao primeiro artigo, o jornal estava na porta com meu nome e minhas ideias. Para um sujeito que esperava três anos para dizer o que pensava num filme, era um surto de felicidade (mais clichê). Mas foi mesmo. Comecei a ter um sentimento novo: a sensação de utilidade pública. Digo isso, porque o cineasta no Brasil se sente trancado do lado de fora da vida social que, mesmo assim, tem de descrever, analisar, criticar. Durante muitos anos, me senti como um cara que quisesse ser astronauta no Piauí. Não posso reclamar, pois alguns filmes deram certo em crítica e público, mas nada se compara ao prazer de esculachar o cabelo implantado do Renan, o bigode e jaquetão do Sarney ou a cachoeira de rugas e valas que escorrem da cara do Lobão.
E fico orgulhoso porque nunca o jornalismo teve tanta importância como em nossos tempos de claros e escuros.
E afirmo também que nunca escrevi para "soprar minha própria corneta" (outro lugar-comum, americano), mas pela emoção de contribuir para o entendimento de mim mesmo e da nossa terra. Botei minha cabeça na encruzilhada como um despacho entre mim e o País em volta. Ficou minha cabeça ali, recebendo os detritos da vida nacional. Muita gente despreza jornalismo como literatura pois, no dia seguinte, a obra embrulha o linguado. Pois bem, eu adoro embrulhar linguados e robalos, porque acho que um banho de efêmero só faz bem à literatura. Vejam Rubem Fonseca e Nelson Rodrigues.
Resolvi ser repórter e prova do crime. Odeio os comentários "de fora", do comentarista intocado, isento, como se morasse num tapete mágico ou num helicóptero existencial. Ninguém está fora do jogo. Ser digno não basta; é preciso se incluir entre os loucos - loucos que acreditam na razão -, uma espécie em extinção. O tempo está cada vez mais ininteligível e temos de cavar fundo, em busca dos erros nacionais dissimulados, assim como os porcos farejam as preciosas trufas brancas.
Nunca no Brasil estivemos tão próximos do entendimento como hoje. A Lava Jato foi um buraco no tempo. Diante dessa época, corremos a chance ou de um grande avanço ou se, por acaso, prevalecer a "anestesia sem cirurgia" (apud Simonsen), permaneceremos no atraso tão desejado por nossos canalhas. Meu contínuo terror é a citada frase de Levy Straus: "O Brasil vai sair da barbárie para a decadência, sem conhecer a civilização". Tomara que Levy Strauss, quando disse isso, estivesse gagá.
Chega de análises; agora é tempo de ação - se é que a ação ainda é possível nessa época de mentiras em que um psicopata é comandante em chefe do maior exército do mundo. Resolvi parar porque vou fazer mais um filme (meus inimigos dirão: mais um?) e estou louco para trabalhar só com a ideia de beleza que, como me disseram que Freud disse, seria a única razão para se viver.
Vou continuar escrevendo, mas sem ritmos semanais, somente "gratia artis", talvez até tentando alguma coisa mais alentada como o romance definitivo de minha geração (rs rs rs). Espero que eu tenha alguns méritos que possam constar de meu necrológio (que espero seja longínquo).
Espero merecer um brinde, pois trabalhei e continuarei trabalhando, com a fé igual à daqueles besourinhos que se esfalfam empurrando bolinhas de merda morro acima. Aqui fico. Desculpem qualquer coisa.
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