Olhos verdes, cintura 43 e alma: a saga para definir quem seria Scarlett O'Hara em 'O Vento Levou'

Edmundo Leite - Acervo Estadão

12/06/2020 | 08h31   

Vivien Leigh superou patriotismo americano e milhares de atrizes para estrelar o maior filme da história

Enquanto a questão racial está no centro das atuais discussões sobre o filme 'E o Vento Levou', na época do lançamento do épico cinematográfico apenas uma questão importava. O que todo mundo queria saber era quem iria interpretar Scarlett O'Hara nas telas coloridas, a grande sensação do cinema naquele fim dos anos 30. Com um país inteiro sabendo praticamente de cor as características da heroína do livro de Margareth Mitchell - que vendeu milhões de cópias nos Estados Unidos logo após o seu lançamento em 1936 - todas as discussões, debates e análises eram sobre qual das grandes estrelas de Hollywood seria capaz de transpor para as telas aquela beleza, olhar e personalidade descritos pela autora já na majestosa introdução do livro.

Se para o protagonista masculino não havia discussão - o astro Clark Gable era consenso para ser Rhett Butter - escolher quem seria Scarlett era uma questão que transcendia à técnica e talento. Era um questão de corpo e de alma. A grande questão foi descrita num artigo de três colunas de Dr. J. Wechsberg no Estadão de 28 de abril de 1940, quando o filme já era sucesso arrebatador desde dezembro nos Estados Unidos e a cinco meses da aguardada estreia no Brasil, que aconteceria somente em setembro:

"Houve divorcios, dissoluções de lares pacíficos, os relatórios forenses cheios de casos de desavenças familiares: tudo isso por discussões sobre o problema: "Quem vai interpretar Scarlett?"

Os jornaes enchiam mais columnas com o filme do que com a venda de armas á Europa. Quem não viveu aquelles dias achará incrível, mas realmente assim foi e não houve dia que não trouxe uma nova sensação relativamente ao filme. Quanto ao personagem de Rhett Butter, audaz e varonil, com quem tantas mulhres têm sonhado, já estava resolvido o problema; só mesmo Clark Gable poderia interpretar Rhett, sympathico, desrespeitoso, barulhento, e apesar de tudo, inolvidavel. Mas qual actriz à altura de interpretar a heroína?

O pobre do Sr. Selznick travou negociações com todas as “estrellas” celebres de Hollywood, mandou tirar provas cinematográphicas, mas nenhuma das actrizes era como a heroína de Margareth Mitchell. Ella deveria ter olhos verdes (é um filme technicolor), cintura esbelta e as demais qualidades descriptas no romance. Nunca o povo norte-americano deixaria que Norma Sheares, ou Greta Garbo, ou Katherine Hepburn, ou Carole Lombard se incubisse desse papel, e escolhendo uma das citadas actrizes, o produtor provocaria uma revolução ou, pelo menos, uma “boycottagem” dos cinemas.

Passarem-se mezes e a situação se ia agravando cada vez mais. O argumento estava concluído – na realidade havia uma colleção de numerosos argumentos, pois eram vários directores do filme – o guarda-roupa estava completo, importando em 183.818 dollares, no terreno do Sr. Selznick já haviam terminado a construção da cidade de Atlanta, e de uma locomotiva com trem do typo usado na época da guerra de Seccessão. Congfeccionara-se também um carrinho de criança, e os 24 vestidos históricos a serem usados por Scarlett O'Hara. Faltava apenas uma coisa: não havia quem desempenhasse o papel da protagonista!

Os mais habeis “caça-talentos” de Hollywood foram mobilisados, homens experimentados a quam basta ver uma joven para exclamarem: “Esta ou nenhuma outra será uma nova Garbo!”. E lá se foram os caçadores de talentos, percorrendo todo o paiz do oeste ao leste e do sul ao norte. Trouxeram 1.400 “Scarletts” differentes que foram fotografadas e entrevistadas; ellas passavam noites em claro a imaginar-se celebridades mundiaes, e as despesas da procura e escolha já montavam os 92.000 dollares, quantia que em nossa moeda representa 1.840 contos de réis. Tal importância, cremos, já bastaria para produxzir um lindo filme no Brasil. Com essa despesa enorme ainda não haviam conseguido encontrar “Scarlett. Nenhuma dellas era considerada “perfeita”, e aquelas que na aparência correspondiam em tudo à personagem do romance, não possuia o menor talento.

Houve, decerto, dias em que Selznick se sentia como todos os grandes inventores e pioneiros, numa crise, quando tudo se parece oppor contra elles e quando em face de tantos obstáculos já pensam ter que renunciar aos seus projectos. Todo grande homem tem passado por semelhantes transes, e o sr. Selznick demonstrou que também em Hollywood havia grandes homens; apesar de tudo, não desistiu. Talvez sofresse crises nervosas; seus amigos já julgavam “Gone with the Wind” irrealisavel, mas Selznick era persevarente. Fez o que ninguém faria a não ser um norte-americano. Tomou uma decisão typicamente “yankee”, das que em tão curto lapso de tempo tornaram ricos e grandes os Estados Unidos: começou com a filmagem sem “Scarlett”, pondo em funcionamento a grandiosa machina que construira.

O que se segue não foi ainda confirmado; dizem que se deu na noite de 10 de dezembro de 1938; nos terrenos da Selznick Company estava sendo filmado o grande incendio de Atlanta. Mr. Sazvitz, o mais ,ais celebre especialista em materia de incendio, já entra em acção, ajudado por seus auxiliares; havia destinado e preparado para esse fim todas as velhas decorações e grande quantidade de madeira, oleo e gasolina. Sete apparelhos focalisavam o enorme incendio, sem igual na historia cinematographica. Despesas: 26.000 dollares. Enquanto o sr. Selznick olhava pensativo para as chammas, calculando talvez o que lhe custaria cada segundo (e ainda nem encontrara uma “Scarlett”), seu irmão se aproximou delle, conduzindo pela mão uma joven de olhos verdes e cintura muito esbelta, pronunciando as seguintes palavras, já classicas em Hollywood: “David, eis “Scarlett” O'Hara”.

O infeliz David nem virou a cabeça. Tantas vezes já ouvira aquellas mesmas palavras; 1.399 vezes durantes os últimos annos. Enfim voltou-se, vagarosamente, e os directores de propaganda affirmam que disse: “Talvez você tenha razão”.

O que vamos referir agora já não é lenda e sim realidade. A joven, que se chamava Vivien Leigh, era uma conhecida actriz ingleza, tendo nascido, por mais estranho que pareça, em Darjseling, ao pé do Himalaia. Tiraram immediatamente uma prova e no dia 13 de janeiro de 1939 Vivien Leigh assinou o contracto. Foi um verdadeiro “dia negro” para as demais 1.399 “Scarlette”. [leia a íntegra]

> Estadão - 28/4/1940

Vivian Leigh - Em 14 de janeiro de 1939, a coluna de cinema do poeta Guilherme de Almeida - que assinava apenas “G” - trazia informações traduzidas da crônica de Hollywwod que, em meio aos movimentos de Clark Gable para emplacar Victor Fleming como diretor, a escolhida para interpretar Scarlett seria Carole Lombard. Guilherme de Almeida terminava a coluna pondo em dúvida se seria a escolha certa: “E parece, afinal que o resultado vae ser este: “Gone With the Wind” assentará sobre esta tripeça: - Lombard-Gable-Fleming”.

Mas... Será mesmo uma boa solução... para os espectadores?”

No dia seguinte, a coluna de Guilherme de Almeida publicava, com informação da United Press, que finalmente havia uma Scarlett:

“Escolhida a interprete do papel de “Scarlett O'hara.”

“A actriz sobre a qual recahiu a escolha de Selznick, chama-se Vivian Leigh, uma joven ingleza, de olhos azues, estatura delgada, e cabellos escuros. Dentre centenas de candidatas, submettidas à experiência, foi ella, Vivien Leigh a única julgada em condições de preencher os requisitos. Selznick apressou-se em presidir as críticas que iam surgir sobre as origem ingleza de Vivien Leigh, frisando que a aristocracia do sul dos Estados Unidos, na época da guerra civil, se ufanava dos seus antepassados inglezes.”

> Estadão - 14/1/1939

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> Estadão - 15/1/1939

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O maior filme da história - Muitas notícias ainda seriam escritas sobre o filme antes e depois de sua estreia. Em 23 de agosto, a coluna Cinema dizia A ingleza Vivien Leigh enfrentou o “blitzkrieg” de Hollywood' e trazia delclarações da própria Vivien sobre as dificuldades que enfrentou: “Quando apresentada por Myron Selznick a David Selznick, ouvi deste a proposta no sentido de me ser dado o papel, confesso que pensei que não passasse de pilheria o que ouvia. Mas David insistiu – frisou que falava a sério, e eu, emocionada, nada resolvi no momento. Considerei a difficuldade tremenda que seria arcar com a responsabilidade, e no mesmo instante calculei também a guerra que me seria movida.”

Após dizer que achava natural a rejeição que sofreria, Leigh contou que pensou em desistir do papel já com as filmagens em andamento:

“Devo dizer que por vezes quasi me senti desanimada a a ponto de procurar David Selznick e pedir-lhe que me desobrigasse da incumbência de viver na tela o destino atribulado da altiva e energetica Scarlett O'Hara. Isso sucedeu nas primeiras semanas de filmagem. Eu não me acostumara ainda a soffrer as pequeninas – mas muito naturaes - perfidias de Hollywood a proposito de minha situação, e alem disso o facto de trabalhar horas e horas seguidas, ás vezes com o maior desconforto, em “locations” ingratos – tudo isso quasi ma abateu o animo e cativo a ponto de desprezar a gloria de ser Scarlett O'Hara.” 

'E o Vento Levou' estrearia no Brasil somente em setembro, nove meses depois dos Estados Unidos. A grandiosidade artística do filme pode ser atestada pela exceção que Guilherme de Almeida abriu na sua 'Sabbatina' pós-premiere onde analisava os filmes em "três linhas, entrelinhas e estrellinhas." 

"Um dos maiores livros destes tempos transformado no maior filme de todos os tempos. A transplantação do romance para a têla, a direcção, a photographia, o colorido, a interpretação por todo o elenco - tudo é perfeito. Seria ridículo, se não fosse impossível, dizer do valor desta obra prima nas habituaes poucas linhas desta 'Sabattina", ou exprimi-la pelo número de "estrellinhas" da costumeira cotação. Tudo o que se pôde, em synthese e acceitavelmente, dizer é que ninguém tem o direito de exigir mais do cinema: esta fita é o maximo que, no seu estado actual e com seu actuaes recursos, é capaz de produzir a Arte do Celluloide."

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