Raul Seixas: o dia em que o roqueiro partiu
Edmundo Leite - Acervo Estadão
21/08/2022 | 00h23   
Cantor e compositor morreu aos 44 anos em 21 de agosto de 1989; veja páginas e fotos
Quando velhos sucessos de Raul Seixas começaram a tocar repetidamente nas rádios na tarde daquela segunda-feira, 21 de agosto de 1989, não foram poucos os que se surpreenderam. Com Raul ausente das paradas desde Cowboy Fora da Lei, dois anos antes, escutar antigos hits como Ouro de Tolo, Gita, Metamorfose Ambulante e Maluco Beleza no meio da programação regular – que então ia da revelação Marisa Monte a Chitãozinho e Xororó e Milli Vanilli, passando por Legião Urbana – deveria significar alguma coisa. E a notícia não demorou a chegar.
Se para muitos foi uma surpresa, para os que acompanhavam o artista de perto era mais que esperado. Suas últimas aparições públicas causavam um misto de choque e comoção. Mesmo com a saúde bastante debilitada, a lenda do rock brasileiro arrastava multidões em seus shows.
Apoiado pelo amigo e discípulo Marcelo Nova, acabara de realizar uma extensa e bem-sucedida excursão por todo o País. A derradeira apresentação foi em Brasília, poucos dias antes de ser encontrado morto no modesto apartamento onde morava sozinho em São Paulo.
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A semana que se seguiu ao show no planalto central seria de descanso e de preparação para as atividades programadas para o lançamento do disco gravado nos intervalos das apresentações pelo Brasil.
A Panela do Diabo, batizado pela dupla por inspiração de evangélicos que distribuíam panfletos comparando Raul ao Belzebu na porta de um show no interior de São Paulo, era o resultado da parceria que uniu os dois irrequietos baianos no momento em que o País vivia uma de suas mais importantes transições.
As primeiras apresentações conjuntas de Raul e Marcelo foram na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador, no ano anterior, a apenas duas semanas da promulgação da Constituição de 1988. Mais que um marco histórico, a nova Carta tinha um efeito prático para o roqueiro. Após quase 20 anos de carreira, pela primeira vez ele estaria legalmente livre para dizer o que quisesse, como pregava a sua constituição, o manifesto da Sociedade Alternativa.
Sem censura - Junto com a volta das garantias coletivas e individuais, a Constituição Cidadã – como Ulysses Guimarães a batizara – acabava de vez a censura às obras artísticas, mantida no governo civil de Sarney mesmo após a saída dos militares do poder e que ainda naquele 1988 havia proibido a execução pública de Não Quero Mais Andar na Contramão, do fraco disco A Pedra do Gênesis que antecedeu o encontro de Raul com Marcelo.
Se os novos tempos traziam liberdade total de expressão, o que faltava agora a Raul era motivação. Diabético, com uma pancreatite crônica decorrente do alcoolismo e recém-separado da última das cinco mulheres com quem foi casado, estava depressivo e amargurado. O sarcasmo, a ironia e a índole zombeteira e verborrágica que por anos marcaram suas aparições e músicas deram lugar a uma figura calada.
O convite do ex-líder do Camisa de Vênus para os shows – junto a um necessário acompanhamento médico – deu uma injeção de ânimo em Raul. Já na chegada a Salvador para as primeiras apresentações, a dupla chegou zombando de Gilberto Gil, que dava na capital baiana os primeiros passos da carreira política que culminaria anos depois com o cargo de ministro da Cultura no governo Lula.
O petista, na época disputando a sua primeira eleição presidencial, também foi alvo da dupla. Com a inédita campanha eleitoral para a escolha do novo presidente a pleno vapor em meados de 1989, o magro barbudo e Marcelo declaravam que não acreditavam em alguém que não ria, referindo-se à então sisudez do petista, considerada na época um dos principais fatores de rejeição a ele.
Apesar do calor da disputa eleitoral enquanto corria a turnê, a sucessão política especificamente não serviu de inspiração para as composições da nova dupla. Mas outros temas que estavam nas páginas de jornais e nos noticiários da TV não passaram despercebidos.
Em meio às celebrações ao “rockão antigo” e canções autobiográficas, a panela preparada por Raul e Marcelo misturava Salman Rushdie, Sting e cacique Raoni em Best Seller e ainda davam uma espinafrada em Edir Macedo na divertida Pastor João e a Igreja Invisível: “Pois eu transformo água em vinho, chão em céu, pão em pedra, cuspe em mel/Para mim não existe impossível/pastor João e a Igreja Invisível.”
Décadas depois, com os mesmos personagens ainda protagonizando os noticiários não deixa de ser premonitória a sentença da já citada Best Seller, que dizia que no final bandido casa com o mocinho.
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Mas os pontos altos do derradeiro disco eram mesmo as que olhavam para dentro, para trás, ou para o futuro, como a mistura de balanço de vida com testamento de Banquete de Lixo:
Muitas mulheres eu amei e com tantas me casei
Mas agora é Raul Seixas que Raul vai encarar
Nem todo bem que conquistei, nem todo mal que eu causei
Me dão direito de poder lhe ensinar
Meu amigo Marceleza já me disse com certeza
Nnão sou nenhuma ficção
E assim torto de verdade com amor e com maldade
Um abraço e até outra vez.
Raul não viveria para ver o relativo sucesso do disco. Morreu aos 44 anos no dia em que o LP chegava às lojas. Também não viu o resultado daquelas eleições, a iminente queda do Muro de Berlim, a chegada da MTV, os anos 90, a internet… que talvez poderão ser cantadas por alguém daqui dez mil anos.
[Texto originalmente publicado no Caderno 2 em 21/8/2009]
Bordoada ácida - A morte de Raul Seixas foi noticiada no Estadão com uma chamada na primeira página e três páginas do Caderno 2. Na capa do encarte, uma grande ilustração acompanhava a letra da música Canto Para Minha Morte, parceria de Raul com Paulo Coelho de 1976.
Na página dedicada ao novo disco, os críticos Luis Antônio Giron e Lauro Lisboa Garcia celebravam o lançamento do trabalho com Marcelo Nova. "Esta Panela do Diabo não poupa ninguém" dizia o título do texto de Giron, que emendava: "Surpreendendo os pós-moderninhos com a mais rascante das sátiras já perpetradas no Brasil aos yuppies, à mídia e à massificação da repressão."
Lauro Lisboa também não economizou nos elogios: "Panela do Diabo é uma bordoada na fuça dos pequineses do biônico popinho brasileiro. A caldeirada vem envenenada de humor ferino, poesia apocalipítica, cítricas histórias reais e rock endiabrado em tamanho porte de honestidade, que se os terminais engenheiros de bíquini sem capital tiverem um pingo de vergonha na cara vão vender geladeira no Alasca. Mais corrosivo que qualquer onda ácida feita em casa, Panela é um disco superlativo, que dispensa adjetivações de estepe. Os 'feios, sujos e malvados' Raul e Marcelo atacam nas raízes."
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